In
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História. 3ª ed – 3ª reimpr – S. Paulo: Atlas, 2011 –
Cap. 04
1. Considerações a respeito do texto
O autor aborda o tema em nove pontos, demonstrando a importância do direito
canônico na história do direito influenciando a organização das instituições,
no processo e no conceito de jurisdição e da cultura jurídica, influenciando a
reorganização completa da vida jurídica européia. Dos canonistas, sai a
primeira classe de juristas profissionais com uma carreira assegurada na
burocracia eclesiástica.
Se a tudo isto somarmos a influencia que a vida da igreja tem no
Ocidente medieval, seja nas cortes seja no cotidiano das aldeias e paróquias,
vemos que o direito canônico, como disciplina da vida, dissemina-se
capilarmente na sociedade. O Direito Canônico pode ser definido como um direito
disciplinar de um grupo religioso.
O Direito Canônico criou a distinção entre o foro interno (individual) e
o foro externo (internação social). Diferentemente do primeiro, o segundo
poderia ser delegado a um juiz e a um tribunal. O Direito Canônico, juntamente
com o Direito Inglês, foi a primeira tentativa de racionalização jurídica da
cultura ocidental.
Boa parte do direito brasileiro descende do direito canônico,
sobrevivendo o procedimento inquisitorial até os dias de hoje.
Por volta do ano 1000 surgiu no interior da Igreja um movimento de
reforma que propunha uma série de reformulações: das relações entre o Poder
Religioso e o Poder Político, das relações internas da própria Igreja etc.
Nessa época era consagrado o Sistema Carolíngeo, que estabelecia a subordinação
entre o poder eclesiástico ao poder político, reduzindo a autonomia da Igreja.
O movimento, nascido na Abadia de Cluny, propunha o Sistema Monástico, que
entre outras coisas proibia o casamento dos religiosos.
Esse movimento também estabeleceu a Trégua de Deus, que excomungava
todos aquele que guerreassem em determinados dias e em determinados períodos do
ano. Isso, na prática, começou a romper a estrutura do poder dos senhores
feudais.
Nesse período também começou o processo de ruptura da noção dos costumes
como fonte do Direito. Cabia ao legislador corrigir os costumes injustos ou
inadequados através do direito posto. Esse processo somente será completado por
volta do século XVIII.
2. Principais Idéias do Autor
Tratar-se-á de forma direta da divisão dos
pontos elaborados pelo autor que considero mais importantes. Far-se-á uma explicação sucinta, direta com percepção de argumento
crítico.
2.1 A reforma
gregoriana e a querela das investiduras
O direito canônico será marcado pela transformação radical liderada por
Gregório VII (papa entre 1073 a 1085). Mas o que foi a reforma gregoriana? A
Igreja do Ocidente era uma comunidade sacramental, espiritual, não jurídica e
nem uma monarquia centralizada em Roma, mas uma espécie de federação de igrejas
nacionais. A autoridade papal era mais tradicional e moral que jurídica e não
era eficaz politicamente. A mudança começa no campo do direito. As leis serão
destacadas dos sacramentos. As leis não passavam de disciplinas e regras comuns
vagas e abstratas.
Com o intuito de libertar a Igreja
do Poder secular, é que Gregório II contrapõe ao poder civil. Suas medidas
tornam-se exemplares do que virá a ser o Estado: conforme a tipologia
weberiana, dominação burocrática, racional, legal e formal. Aliado ao direito
Romano Clássico e ao direito Inglês (camon
Law), tendo em comum a organização jurisdicional com propósitos políticos
determinados. O Dictatus Papae emitidos por Gregório II e tornado público em 1705,
com 27 preposições, destacando-se um poder centralizado no bispo de Roma, seu
legado precede aos demais ainda que tivesse um grau hierárquico inferior aos
demais, com poderes de depor e instalar bispos (não mais o imperador, como
forma de compadrio), só ele podendo depor imperadores e de não ter nenhum de
seus julgamentos revistos, mas ele podendo rever o de todos. Propõe também o
celibato para por fim na hereditariedade dos cargos eclesiásticos dado aos
leigos como “benefícios”, evitando que os filhos herdassem os cargos. Também pôs fim a sacralidade dos reis, o rei
estava dentro da igreja e não acima dela (imperator
in Ecclesiam, non super Ecclesian; Esta centralização papal vai gerar
conflitos com os reis da Inglaterra e Portugal, por isso a reforma gregoriana foi
considerada por Berman a primeira revolução Ocidental, pois trouxe mudanças
rápidas, de maneira consciente e violenta.
A Igreja pretende ser um poder paralelo ao Estado.
A carta de Henrique IV começará a Guerra das Investiduras, que durou 44
anos. Iniciou em 1708 e terminou em 1122 com a Concordata de Worms. O que foi a guerra das investiduras? Foi o
enfrentamento do problema jurídico: “O imperador era considerado apenas um
entre vários reis, mas o papa também era considerado um dentre vários bispos.
Era a disputa entre o poder espiritual e o temporal. O resultado da Guerra das
Investiduras foi com a Concordata de
Worms foi: “O Papa investiria os bispos, mas o imperador teria direito de
estar presente nas suas eleições”.
“Da concepção de Gregório VII começou nascer o estado: uma burocracia,
um poder de criar legislação, uma ambição de universalidade” Diz LOPES (2011, p.
74). Com Gregório foi estabelecida uma um poder disciplinar, um controle
central de uma população dispersa e uma identidade corporativa do clero com um
certo corpo de leis disciplinares, o que deu uma consciência de classe, bem
como a superioridade das leis sobre os costumes e regularizou a competições
entre as entidades políticas, não mais pela força (potentia), mas pelo poder legítimo (potestas).
A disputa pelo poder entre o bispo da Igreja e o rei ou imperador, em limitar
onde começa o poder do rei e onde termina o da igreja, ou quem manda em quem?
Se os reis eram coroados pelo papa, logo o rei era inferior ao papa? O conflito
de jurisdição entre a igreja e o rei, visto que foi a partir daqui que surgiu a
figura do Estado.
2.2 A formação do Corpus Iuris Canonici
A reforma gregoriana trouxe a centralização da interpretação das leis.
Só o Papa podia realizar a interpretação autêntica. Foi daqui que surgiu o
princípio monárquico.
Os canonistas auxiliaram o
desenvolvimento desta idéia, pois jurisdição no período medieval era mais do
que a função do judiciário de hoje. Ela tinha duas características: 1) “A
justiça não era apenas uma das atividades do poder. Ela era a primeira, senão a
única atividade do poder”.
A justiça era limitada pela doutrina do direito natural e a tradição e
pelos direitos dos particulares e pela autonomia das corporações e costumes. A
atividade legislativa, judiciária e administrativa não se separavam e qualquer
decisão tornava-se vinculante.
2) A hermenêutica tinha primazia
sobre a vida do direito. O fato da religião cristã ser uma religião normativa,
através das Escrituras, como também o judaísmo e os mulçumanos serem a religião
dos livros, a interpretação exigia normas próprias para vencer o obstáculo
temporal entre o autor do livro e o intérprete, o que fez do direito uma
disciplina intelectual. Em 1140 surgiu a obra fundamental do direito canônico
clássico, o Decreto de Graciano. Uja
coletânia de mais de 3.800 textos com comentários, serviram de fonte para os
canonistas posteriores. Graciano era diferente dos juristas civilistas que viam
o texto jurista como acabado, ele via como corpo
vivo. Empregava método escolástico, que “em caso de contradição seria preciso fazer uma distinção”. Organizou hierarquicamente os princípios pelos quais se
eliminava as antinomias dos cânones,
usando quatro critérios: ratione
significationis (eliminava as contradições pela investigação filológica), rationitemporis, rationi loci rationi
dispensationis. Sendo o primeiro (distinguiam normas pelo seu tempo de vigência; a lei local
particular revogaria a geral; a posterior revogaria a anterior; e pela matéria, a lei especial revogaria a lei
geral). Utilizando-se da racionalização da dialética, era preciso aplicar esta
interpretação não de forma abstrata, mas caso a caso. (SUS Decretos tinhas três
partes: Princípios e definições do direito canônico e suas fontes, hipóteses
aplicativas as casos, variando a matéria penal, matrimonial etc.) e questões
(problemas).
A Igreja passou a ter uma hegemonia de canonistas que constituíram a
primeira burocracia moderna do Ocidente. O Papa Alexandre III (papa de 1159 a
1181) aluno de Graciano, produziu 700 Decretais, que eram vereditos ou decisões
de casos concretos ou de consultas que se tornavam normas gerais.
Surgiu também o Tribunal da Inquisição, tribunal extraordinário, de
poder centralizado para julgar matéria de heresias. Também chamado de Tribunal de Exceção, porque escapava da
jurisdição ordinária (dos bispos locais) e porque dispunha de regras processuais
próprias.
O conjunto de Decretos de Graciano e as Decretais
de Gregório IX passou a ser chamada de Corpus
Iuris Canonici. As universidades estudavam dois corpos de leis: direito
canônico (eclesiásticos) e direito civil (romano, imperial, Cesário...) e o
título conferido a quem estudasse leis e cânones era: Doctor Utriusque Iuris que significa: “doutor em ambos os
direitos”.
O título de doutor para os bacharéis em direito vem desta época.
A intelectualidade dos canonistas, fez
deles a primeira classe burocrática moderna
que se distinguiu pelo notável saber das leis canônicas e civis.
2.3 O processo
inquisitorial
Lopes afirma que segundo Foucault , o processo inquisitorial não tem
origem exclusivamente canônica, mas numa nova forma de exercer o poder. Não
mais pela guerra particular, mas fazendo perguntas. O inquérito como modelo
judicial e jurídico tem uma origem dupla, religiosa e administrativa (estatal).
O sistema inquisitorial já era procedimento conhecido pelos normandos, quando
Guilherme I mandou fazer na Inglaterra
um grande inquérito administrativo, onde continha os registros de todas
as tendências de terra do reino. Em Portugal D. Afonso III FEA as Inquisições também para levantar a
situação das terras do reino. Mais tarde o mesmo ocorreu na França.
“O que
significa tais inquéritos? Para Fucault era o surgimento de um novo personagem
– um investigador e acusador a serviço oficial, representando o estado, que
procede de forma ordenada e irracional, produzindo o resultado da investigação de
modo diferente das provas irraconais anteriores”.
(LOPES, p. 91)
Entretanto, as duas características da inquisição medieval, era a ter se
tornado um Tribunal de Exceção (conduzia pelo legado papal e não mais n na
jurisdição ordinária do bispo local) mas apenas nas matérias consideradas sujeitas à inquisição,
especificamente a heresia. A inquisição serviu de instrumento de centralização
do poder monárquico da Igreja, no século XVI, nos Estados nacionais e na
Península Ibérica.
Era um processo que se abria de
ofício, a mando do inquisidor, parecido com nosso processo administrativo,
e perdia o caráter de contraditório. Neste modelo, o juiz inquisidor tem a
iniciativa oficial. Pelo fato de haver uma generalizada delação secretas este
sistema se degenerou. Foi declarada guerra contra os hereges. A heresia no
período medieval não era apenas uma questão espiritual, mas político, uma
subversão contra as autoridades religiosas, os reis e príncipes que eram
senhores cristãos.
Nasceu num contexto de revoltas, em meio a crise do clero e dos pobres
dos séculos XII e XIII o que possibilitou a imposição do poder central do
papado.
Em 1231 Gregório XI determinou na bula Excommunicanibus o procedimento dos inquisidores oficiais e
profissionais que eram nomeados pelo papa. Deveriam ter depoimentos uniformes
de duas testemunhas, que eram resguardadas o anonimato, que sob juramento
poderiam ser contraditadas diretamente. As tarefas inquisitoriais foram
confiadas aos mendicantes dominicanos, cujo propósito da ordem era combater o
erro pela verdade e pobreza pela vida. Aos culpados eram impostas as penas de
penitência na prisão, num convento, numa sede episcopal, com parede larga, ou
estreita e acorrentados.
Em 1252 Inocêncio IV permitiu a
tortura para obter confissão. Os erros e excessos das punições cruéis foram
conhecidos, pelo que Alexandre IV por uma bula estabeleceu que os inquisidores
que se excedessem seriam submetidos à jurisdição extraordinária.
Na Europa dos séculos XVI e XVII a inquisição foi usada contra a Reforma
Protestante, onde a intolerância religiosa fez a fogueira da “santa” inquisição
arder, contra católicos, calvinistas, puritanos, luteranos e contra qualquer
movimento de revolta social e político.
Mas foi também no processo inquisitorial que surgiu a figura do advogado
de defesa obrigatória. Caso o réu negasse as acusações, o juiz inquisidor era
obrigado a nomear um advogado, “mesmo que não fosse pedido”. Este jurava usar todos
os remédios e defesas possíveis e se o réu fosse pobre os honorários seriam
pagos pelos fundos públicos. Nos casos de heresias o advogado deveria
demonstrar que não haviam ocorrido as duas condições do crime: “erro
intelectual” e a “pertinência da vontade”. Assim a sua deficiência intelectual
e seu estado emocional eram as “teses”
fundamentais da defesa.
O processo inquisitorial medieval serviu de modelo para o direito
brasileiro, que ainda se utiliza de alguns procedimentos processuais. Na esfera
penal o Inquérito Policial, a necessidade do advogado, que se o réu for pobre,
o poder público é quem paga, no Brasil o defensor público. As teses de defesa
da insanidade mental ou da motivação para cometimento do delito, se fútil,
torpe ou estado de necessidade, legítima defesa etc.
2.4 Contribuição da
canonística para a teoria da pessoa jurídica
Foi a partir do direito canônico que surgiu a teoria da pessoa jurídica.
Os problemas de patrimônio comum, representação, responsabilidade dos membros,
responsabilidades dos dirigentes, sucessão, autonomia, autorização. A Igreja se
viu diferente do império, onde nos laços de relações entre clérigos e leigos
era diferente da relação entre senhores feudais e vassalos.
Daí os princípios que surgiram
foram: autonomia da associação, a corporação detinha direito sobre seus
membros; em alguns casos os representantes devera ouvis os representados, sob
pena de invalidade de seus atos; solidariedade entre os membros da corporação,
aquilo que pertencia à sociedade pertencia aos seus membros, daí se originava o
poder de taxar; quanto aos crimes e penas impostas, alguns casos era imputados
a todos os membros e em outros apenas ao representante.
Assim se percebe que o direito é fruto das necessidades que surgem no
decorrer da história das sociedades e que a criação das normas vem como
soluções dos problemas que para regular os conflitos.
3. CONCLUSÃO
Pode-se entender que Gregório estabeleceu novos ditames do direto naquela época. Essa
ação do Direito Canônico vem até os dias de hoje através da presença do Advogado
de Defesa e o Inquérito Policial por exemplo.
Dessa feita, há em que se afirmar, sem precipitações, que o Direito Canônico é um dos marcos mais
importantes e relevantes que o Direito teve. Pois foi através deste que uma
nova concepção de separação da Igreja e o Estado principalmente acarretaram
novas idéias e novos horizontes que se repercutiram ate os nossos dias.
Dr. Abner Jara
OAB/AP 2919